quarta-feira, 24 de julho de 2013

Recorde de alguém que já faleceu


Quando tirei a carta lembrei minha falta de tato quanto ao assunto. Tudo porque minha primeira percepção da fragilidade do ser humano veio em uma confusão enorme. Para reconhecer aqueles sentimentos de descoberta preciso dar uma espiada ali na minha infância. Eu era uma criança solitária, porém a vontade de estar sozinha não tinha qualquer elemento depressivo, era só meu jeito devagar de conhecer o mundo contemplando o pequeno círculo social que me cercava. Talvez por ter me dedicado tanto em observar as pessoas o amor nunca foi confuso pra mim, sabia quem me queria bem e respondia esses sentimentos sinceros.

Naquela época, morávamos em uma rua humilde, onde as dificuldades se condensavam e cada um se ajudava como podia, mas uma família, em especial, merece a admiração e a homenagem desse texto. Eram nossos vizinhos chilenos, personagens interessantíssimos, viviam na mesma pobreza, sofriam assaltos constantes, tinham o cansaço de trabalhar o dia inteiro pra se sustentar somado à dificuldade de estar longe do país de origem e sem poder falar a própria língua. E mesmo assim, eram felizes. Compartilhavam risadas, histórias bonitas, receitas com todos. Minha maior alegria foi ver que eles logo se tornaram amigos de meus pais, e diga-se de passagem, amizade aquela que veio na melhor hora, porque na época ninguém se dava o direito de sonhar com um futuro melhor, a ideia fixa era trabalhar para sobreviver e ponto. De uma hora para outra, minha mãe passou a abrir as janelas da casa, colocar música na sala, escolher toalha de mesa florida nos almoços de domingo. E eles assumiram a respeitável posição de padrinho e madrinha para mim e meus irmãos.

Só que um dia eles não apareceram no final da tarde para conversar. Eu esperei e nada. Me colocaram um vestido preto e o ambiente ao meu redor assumiu um ar de pesadelo insuportável. Disseram que a minha madrinha tinha partido, pra um lugar melhor. Me calei. Foram dias sem falar uma palavra sequer. Eu mesma não sabia explicar o porquê, só uma dor quase física que surgiu sem ninguém avisar que era possível sentir tanta saudade de alguém. Desde então essa é a única posição que consigo assumir diante da morte. Silêncio que pode ser confundido com desinteresse, mas na verdade é medo de deixar o mundo um dia sem ter feito a metade do que aquela mulher maravilhosa fez.

Ana Terra

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